Eu quero falar de privilégios e da falácia de que basta querer pra gente se cuidar e cuidar bem do outro, da mentira que nos atormenta colocando em nossa conta responsabilidades que precisam ser pagas coletivamente. Eu quero falar da fase em que eu não conseguia marcar uma consulta médica, salvo em situações que me incapacitavam de trabalhar e produzir, de uma fase em que eu tinha tanto foco em sobreviver que a ideia de autocuidado era apenas mais um peso nos meus ombros extremamente sobrecarregados. Uma época em que todas as minhas forças estavam focadas em me manter viva e suportando tudo que eu precisava suportar.
Quero falar e falar e falar da ilusão que é a teoria distanciada da vida real e do contexto. Essa semana meus filhos decidiram fazer atividades físicas diferentes e nós, marido e eu, conseguiremos atender a esse desejo porque temos tempo e dinheiro pra isso. Eu pensei “que incrível ver a individualidade de cada um sendo desenhada e que grande MERDA saber que tão poucas crianças terão essa oportunidade. “
Tenho feito uma bateria de exames e descobri o quanto a fase focada em sobreviver me adoeceu física e emocional. E cuidar do que está aparecendo é um privilégio. Deveria ser direito, mas não é. Exercício físico, alimentação saudável, acompanhamento profissional, nada disso cai do céu.
Eu vou falar e questionar e criticar a ideia absurda de que basta querer, porque, meus amores, todo mundo quer viver bem. O querer é uma parte, apenas uma merda de uma parte. São muitas a variáveis.
Cuidado com o seu dedo privilegiado em riste. Olhe pra onde ele está apontando. O mundo é muito, muito maior que o seu umbigo.
Eu sobrevivi à pior fase da minha vida. Ferida, machucada, traumatizada. Mas sobrevivi. Sim, eu defendi muito o meu querer. Lutei muito pra isso. Mas não deveria ser assim.
Não use negros famosos, histórias pontuais pra justificar a sua pouca consciência social.
Pra cada um que você usa como exemplo, uma infinidade luta pra sobreviver até morrer.
Basta querer… eis a mentira com as pernas mais longas que conheço…