Quando a gratidão aprisiona

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Dia desses entrei no mercado e fiquei revoltada com o preço do quilo do tomate. Tirei uma foto e postei nos stories. Imediatamente alguém comentou que eu deveria ficar grata por poder pagar e eu fiquei com 10 vezes mais raiva: do preço absurdo e do silenciamento do meu incômodo.

Estamos acostumados a silenciar o incômodo do outro porque não sabemos o que fazer com o incômodo que ele nos desperta. Consegue perceber? Quantas vezes a gente fala que o filho deveria agradecer o fato de ter a oportunidade que não tivemos porque não sabemos lidar com o medo de se tornarem arrogantes, por não sabermos lidar com a angústia de ver os nossos esforços não reconhecidos e por incômodos que sequer sabemos nomear?

Quantas vezes usamos a gratidão pra dizer para o outro que ele não deveria estar sentido o que sente, porque achamos que temos a capacidade de determinar os melhores sentimentos pra cada situação?

E quantas vezes as nossas dores são silenciadas quando tudo que precisamos é falar sobre elas?

Não escolhemos como vamos nos sentir, mas como vamos lidar com o que sentimos. Não temos um cardápio em que podemos selecionar o sentimento que mais combina com o look do dia ou com o que queremos para as relações. Não é assim que funcionamos, quando vamos finalmente entender isso?

Seu caderninho da gratidão não vai mudar a sua vida se ele serve pra te fazer fingir que a dor não existe. Sim, sentir gratidão é maravilhoso e importante, como reconhecer, nomear e cuidar de todos os nossos outros sentimentos também.

Achar que podemos falar somente de amor, sentir somente alegria e gratidão é negar partes importantes de quem somos. Impor sentimentos aos outros é apenas uma forma dissimulada de dizer “cala a boca!”.

Suas intenções podem ser lindas e nobres, mas isso não muda a violência da fala e a insensibilidade do gesto.

Que incômodos deixamos de ouvir em nós e no outro quando estamos ocupados demais determinando o que deveríamos ou deveriam sentir?

O que estamos deixando de cuidar nas nossas relações porque não conseguimos lidar com os incômodos que vão além dos sentimentos felizes?

O que você deixa de ver quando se impõe sentir apenas gratidão?